quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A professora doente, o mercado indígena, a negra da lata, o musseque e a cubata da Joana



A professora do último tempo tinha faltado porque estava doente por isso, saí das aulas uma hora mais cedo. Estava calor, um calor húmido que me colava a bata às costas e ao peito mas mesmo assim resolvi ir a pé para casa. Com a cara levemente corada, pela ideia da aventura e com a pasta da escola ao ombro atravessei a rua e comecei a percorrer o longo caminho, lentamente saboreando cada momento. À minha frente caminhava um grupo de raparigas do meu liceu que riam até das moscas que viam passar, sem querer acabei por rir do riso delas. Quando passei perto do “Jumbo” o enorme e único supermercado que me fascinava porque vendia tudo, lembrei-me dos soutiens lindos de morrer que tinha visto lá dentro na semana anterior, tinham alças cruzadas e eram de várias cores, já tinha decidido que ia comprar um amarelo mas naquele momento não tinha dinheiro suficiente para a compra, por isso não entrei, continuei o meu caminho e depressa cheguei ao mercado indígena que apesar de estar quase vazio de compradores ainda era um mundo de confusão de galinhas, quiabos em montinhos em grande equilíbrio em cima da bancada, bananas pequenas em grandes cachos, sacos de fuba, peixe seco e milhares de moscas. O som cantante do quimbundo misturado com português embalou-me até ao fim do mercado onde estava o que eu procurava. De cócoras estava uma velha negra de panos, ao seu lado direito, em cima de uma fogueira fumegava uma lata que em tempos tivera azeite e que por tantas vezes ser usada estava preta, pousada no chão, à sua frente tinha uma caixa de madeira onde cuidadosamente e de uma forma quase requintada estavam colocados pequenos pedaços de papel vegetal onde ela deitava um preparado de açúcar em caramelo com ginguba, uma receita deliciosamente tentadora, tão tentadora que a lata preta era apenas um pormenor insignificante. Comprei duas doses e fui embora bem devagar enquanto me regalava com aquele banquete ao mesmo tempo que ia pisando a terra macia do musseque levantando com os pés aquela poeira vermelha que enfeitava o ar e depois caia suavemente em cima do capim e das mandioqueiras ou salpicava as cacimbas como canela num bolo. Atravessei o musseque e só parei em frente à cubata da Joana para beber água. A Joana tinha sido em tempos nossa lavadeira e gostava muito de mim porque eu adorava falar com ela. Quando passava perto da cubata dela, convidava-me sempre para entrar e eu entrava sempre sem me fazer rogada. Gostava da cubata dela de chão de terra batida, tão batida que se podia varrer, de paredes de canas forradas a barro seco, tão seco como tijolo. A cubata era fresca e não sei porquê agradava-me olhar para as cortinas que me faziam lembrar vestidos coloridos pendurados nas paredes. Bebi água despedi-me da Joana e dos filhos e parti para a última etapa da minha aventura, entrei na rua principal do Bairro Popular, e num instante cheguei ao largo o imbondeiro, onde parei para descansar porque a minha mãe não podia descobrir que tinha vindo aquele caminho todo a pé sozinha, eu só podia fazer isso. quando não tinha as aulas todas mas não queria ser apanhada. Enfrentei o resto da rua até ao Sarmento Rodrigues com ar inocente e o coração empenhado em repetir tudo de novo, se a professora continuasse doente.


Foram semeados, naquela terra vermelha, sonhos que ainda sonham, sonhos que ficaram de asas cortadas  mas que ainda são sonhos vivos.










2 comentários:

Letinha disse...

Nixa...

Também eu muitas vezes vinha a pé para o Bairro....
Até que um dia....apanhei tal susto que jurei nunca mais....eheheheh
Era já noite, quando, ao atravessar o muceque, ouvi uma voz dizendo:
"Espera aí, que já te caço"
Menina...nuca o caminho até ao Bairro tinha sido feito em tão pouco tempo!
Acho que nem o Carlos Lopes na Maratona Olímpica, fez o mesmo tempo que eu!
Nunca mais me atrevi a ir... a pé!

Adorei a tua caminhada para casa...

Letinha

São Matos disse...

Mas que meninas aventureiras!
As minhas aventuras foram mais no mato,mas mato mesmo!
Hummm... o açúcar torrado com ginguba era um delícia.