quinta-feira, 29 de abril de 2010

O mundo é baixinho III

(continuação)

VI

No dia de Natal, acordei cedo, não queria perder um minuto daquele dia especial, queria estar bem acordado no momento em que o kandengues começassem a sair para a rua por isso, aprumei as minhas folhas dei brilho às minhas castanhas, virei os meus cajus para o sol de forma a ficarem mais amarelinhos do que os ovos das galinhas da mãe da Nixa, alimentadas com milho e esperei pacientemente para ver o que o Menino Jesus tinha dado a cada menino. Cedo começaram a aparecer na rua, os brinquedos novos acompanhados dos seus donos. Eu sabia que a Nixa tinha pedido uma boneca vestida de noiva e esperava que o Menino Jesus não se tivesse esquecido de a comprar . Ela merecia a tal boneca porque uns anos antes a prima dela que é mais velha 12 anos tinha uma boneca em loiça, vestida de noiva que ela sentava todos os dias em cima da sua cama, um dia reparou na paixão com que a Nixa olhava para a boneca sentada na cama, então pegou nela ao colo e perguntou-lhe "-Gostas da boneca?" a Nixa abanou a cabeça em sinal afirmativo, e quando a prima lhe disse "-Eu dou-te a boneca, se tomares conta dela com carinho" ela estendeu os braços num abraço apertado muito feliz com a oferta da prima e prometeu tratar bem da boneca. Infelizmente não conseguiu porque nesse mesmo dia uma menina arrancou-lhe a boneca da mão e atirou-a de um primeiro andar, a minha amiga, a chorar correu para o rés do chão apanhou a boneca um pouco partida e subiu as escadas com a boneca ao colo, quando chegou ao andar de cima a menina tirou-lhe novamente a boneca e repetiu a maldade atirando-a para baixo, dessa vez a boneca ficou feita em cacos e a Nixa desconsolada. No dia em que me contou o que tinha acontecido à linda noiva da prima, como ela lhe chamava, decidiu que nesse Natal ia pedir uma parecida para sentar na cama dela mas não queria que fosse em loiça para não se partir como a outra. No dia 24 à noite veio a correr ao quintal e disse-me "-Jueirinho, amanhã à tarde sento a minha noiva no muro (se o Menino Jesus me der uma) eu sento-me no baloiço e escrevo o que tu ditares" respirei fundo e pensei que finalmente tinha chegado o dia tudo dependia do Menino Jesus. Por isso quando a porta de casa da Nixa se abriu eu espreitei para ver se ela vinha com a boneca na mão, parecendo adivinhar a minha curiosidade ela levantou a boneca para eu ver bem e deu uma gargalhada. Feliz da vida passou por mim e disse "-É linda não é Jueirinho?" eu nunca tinha vista uma boneca tão bonita e para dizer a verdade, noivas a sério só tinha visto uma. As outras meninas vieram a correr para ver a boneca e foram todos para o quintal que ficava em frente enquanto eu ficava a sonhar com uma mangueira carregadinha de mangas, vestida de noiva a olhar para mim apaixonada. Estava tão distraído que nem vi que a Nixa tinha voltado e que passava a mão no meu tronco. Olhei para baixo e vi que estava quase a chorar, aflito perguntei o que tinha acontecido e ela desolada, mostrou-me a boneca que tinha perdido o véu já não abria um olho e tinha ficado sem pestanas."- Nunca mais os deixo mexer nos meus brinquedos, estragam tudo!"disse ela. Desejei ter braços para a abraçar ou ter pernas para a sentar ao meu colo, ela estava mesmo triste a sua boneca nova já parecia velha. Como não conseguia dizer nada inteligente disse-lhe apenas "- Gosto de ti e também gosto da tua linda noiva, mesmo sem pestanas" Ela olhou para mim, olhou para a boneca, abraçou-me e respondeu-me "- Tens razão Jueirinho, mesmo sem pestanas e com um olho fechado ela é a minha linda noiva e eu gosto muito dela, agora tenho que ir contar à minha mãe" Nesse dia não voltou a sair de casa para não lhe estragarem mais nada e por isso os meus pensamentos continuaram dentro de mim a crescer como bolo no forno, à espera do dia seguinte.

VII

O resto do dia de Natal correu bem, na semana seguinte chegou o novo ano, gostei muito de entrar em 1968 com todos os vizinhos em festa e até pedi um desejo, já devem ter adivinhado qual foi mas eu digo na mesma, pedi para conseguir realizar o meu sonho de escrever as minhas memórias. Por isso no dia de ano novo voltei ao ataque enquanto a minha secretária, sentada no muro, comia uma fatia de um bolo com prenda e sem fava, comecei por dizer que sabia que ela estava farta de escrever os trabalhos de casa, continuei mansinho dizendo que sabia que ela estava de férias mas que do meu belo livro ainda só estava escrito o titulo, disse que gostava de escrever umas linhas e ela, satisfeita com a prenda do bolo, nem reclamou disse logo que sim, que no dia seguinte escrevíamos pelo menos dez páginas. Foi um castigo para adormecer nessa noite, estava nervoso e emocionado, dez páginas eram quase um livro. No dia seguinte, a Nixa disse-me bom dia por volta das 10 horas, vinha de patins como sempre e acompanhada do Chau-Chau, travaram em frente ao portão, ela fez-me uma vénia e perguntou "-Jueirinho, tens sede?", respondi "-Não, obrigado.", A minha amiguinha perguntava isso porque achava que eu bebia pouca água por isso às vezes enchia um copo de água e deitava para o chão ao pé de mim. Como nos outros dias em que a Nixa andava de patins, o cão dela, o Chau-Chau, patinava com ela, ele é um bom patinador mas "patina sem patins", é um cão preto e branco e muito peludo, a Nixa diz que ele tem cara de cão chinês eu até esse dia achava que ele tinha cara de parvo principalmente quando vinha fazer chichi no meu tronco e depois olhava para mim com ar satisfeito, por isso eu dizia que o nome dele estava errado não devia chamar-se Chau-Chau, devia chamar-se Chi-Chi mas a dona dele ria-se e dizia para eu não ser resmungão que azedava os cajus. De qualquer maneira fui avisando o príncipe cão que um dia ainda lhe caia um ramo em cima se ele repetisse a gracinha. Apesar de não gostar das façanhas do Chau-Chau em volta do meu tronco achava piada à forma como ele andava ao lado da Nixa quando ela andava de patins, ela deslizava e ele parecia deslizar também e eu ficava cá de cima a ver os movimentos deles lá em baixo no mundo do quintal. Estava a Nixa a fazer uma pirueta complicada quando o Chau-Chau começou a ladrar e correu na direcção de um portão que dava para a zona das mangueiras, mamoeiros, capoeiras e pombal. Em cima do degrau e prestes a entrar no quintal, estava uma ratazana enorme, quando viu o Chau-Chau ficou em pé nas patas traseiras e tentou morder no cão a Nixa muito aflita foi buscar uma vassoura mas a mãe não a deixou aproximar-se, com muita bravura o Chau-Chau, lutou com a ratazana e não a deixou passar do portão. A ratazana morreu e o Chau-Chau ficou ferido, teve que ser tratado e teve direito a mimos todo o dia. Como devem calcular por causa desse episódio as minhas 10 páginas ficaram para outro dia mas não me importei porque o Chau-Chau defendeu a minha amiga e isso é que foi bonito de ver.


(continua)

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