segunda-feira, 26 de abril de 2010

O mundo é baixinho I

Olá, eu sou o cajueiro que vive em frente à casa da Nixa, para os amigos sou o Jueirinho, é assim que ela me chama, somos amigos e por isso lembrei-me de lhe pedir para escrever algumas coisas sobre mim, eu não o posso fazer porque ainda não sei escrever, sou muito novo, as árvores só vão à escola depois dos 150 anos e eu ainda só tenho 120 .
Contratei a Nixa e durante alguns dias eu e a minha secretária vamos fazer tudo para conseguirem sentir as minhas alegrias, as minhas dificuldades, os meus prazeres enfim, vamos fazer com que vistam a pele de uma árvore.
Combinei com ela que lhe vou pagar com cajus madurinhos como ela gosta, aceitou logo, pudera, a miúda adora cajus.
Eu e a Nixa, conhecemo-nos em 1964. Nesse dia ela apareceu no quintal, olhou em volta, levantou a cabeça na minha direcção e depois de fazer um reconhecimento pelo quintal todo começou a brincar tranquilamente com pequenas coisas que encontrava no chão e que tratava como tesouros, juntando-os num cantinho, folhas bonitas, pequenos paus, pedrinhas redondas e castanhas de caju. Mais tarde, sentou-se perto dos tesouros, pegou nas castanhas de caju e olhou para elas curiosa. Eu com o meu ramo mais comprido esbracejava e chamava "-menina, menina!" mas ela só tinhas olhos para as castanhas de caju, então aconteceu o que eu temia, suavemente pousou todas as castanhas no montinho ficando apenas com uma na mão e diante dos meus olhos esfregou a castanha pelos braços enquanto eu rezava aos berros para a castanha estar seca mas isso não aconteceu e ela ficou com os braços queimados com o ácido da castanha. No dia seguinte ela apareceu de novo no quintal e ficou a olhar para mim, depois aproximou-se e perguntou "-Tu também queimas Jueirinho?" eu olhei pasmado para ela e depois com ar de superioridade respondi "-Claro que não!" ela sorriu e disse "-Então queres ser meu amigo?" e foi assim que ficamos amigos.
I

Daqui do alto o mundo é baixinho, só vejo os lombos dos animais e os cabelos das pessoas a menos que olhem para cima e aí sim, vejo as caras, umas gordas outras magras umas cor de rosa e outras castanhas. Já perguntei à Nixa que anda na 2ª classe e sabe muitas coisas, porque motivo as pessoas são tão diferentes, ela respondeu-me que pensa que são diferentes para serem reconhecidas por Deus mas não tem a certeza. Diz a Nixa que como Ele é bom a desenho vai fazendo caras de várias cores e feitios e vai dando um número a cada uma delas, assim pelo número e pela cara Ele sabe sempre quem é que faz disparates. Eu não sei se é mesmo como ela diz mas que Deus é mesmo bom a desenho, isso é verdade porque eu sou lindo de morrer e foi Ele que me desenhou.

II

Estive aqui, desde manhã cedo à espera da minha secretária mas só às cinco da tarde, é que ela apareceu, toda fresca com duas tranças e disse-me com a maior das latas que esteve todo o dia na praia do km 34 a tomar banho a brincar e a apanhar quitetas, fiquei fulo e respondi-lhe"- Como se não houvesse água em casa para tomares banho ou como se não pudesses brincar aqui, quanto a essas tais quitetas devem ser uma vaidosas que nem fruto dão" ela riu-se foi calçar os patins,( porque a minha amiguinha, quando está em casa ou anda descalça ou anda de patins, a mãe até está sempre a perguntar se ela não tem sapatos.) deu uma volta ao quintal e disse "- as quitetas não dão fruto mas são boas e vão ser o meu jantar, volto depois, gosto muito de ti Jueirinho tonto e ciumento". Fiquei todo inchado porque eu também gosto muito dela, por isso esperei mais um bocado e ela voltou mesmo "- Agora já está tudo bem já posso escrever um pouquinho da minha história" pensei eu mas enganei-me porque nesse momento veio uma cambada de "turras" amigos dela e decidiram todos que bom era mesmo irem jogar ao prego, o que eu acho um perigo e dos grandes para mim, sim porque aquelas coisas afiadas tão pertinho dos meus pobres pés raízes até me arrepiam as folhas e me encolhem as castanhas. Eu bem dou aos ramos e gemo mas como não posso sair daqui lá me vou distraindo com as gargalhadas felizes deles e com as carícias que fazem no meu tronco enquanto esperam a sua vez de jogar. Quando finalmente acabou a brincadeira e a Nixa veio para perto de mim de lápis e papel na mão, fiquei tão feliz que ate me nasceu uma folha, tinha tantas coisas para lhe ditar mas infelizmente nem tive tempo de ditar a primeira palavra, porque a mãe dela apareceu para estragar o negócio, dizendo que já estava na hora de ir para a cama. Antes de se ir embora ainda me gritou da entrada "-Dorme bem Jueirinho, não fiques triste, paciência, fica para amanhã". "-Que remédio" rosnei eu, mas passou-me depressa a birra porque um morcego veio comer uma goiaba para cima do meu ramo mais alto, o camaleão que vive no quintal sentou-se no muro e ficámos os três a conversar até de madrugada, sentido o cheiro quente e húmido da terra misturado com o cheiro doce e fresco das goiabas maduras das vizinhas goiabeiras, lá no alto a lua enorme e redonda parecia aprovar a nossa conversa sorrindo luminosa para nós.

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