quarta-feira, 28 de abril de 2010

O mundo é baixinho II

(continuação)


III

Eu sei que é feio mas tive que esticar os ramos para me espreguiçar, a noitada deu cabo de mim. Acordei com uma D. louva-a Deus embirrante que me perguntou se eu tinha visto passar o namorado dela, claro que eu respondi logo que não sabia dele mas se soubesse também não lhe dizia, coitado do namorado, sei bem a sorte que o espera, já vi alguns casos aqui mesmo no meu elegante tronco. A manhã estava linda, o sol brilhava por cima dos meus ramos por isso, aproveitei para ficar a ver os movimentos da minha rua. Os pais que iam para o trabalho, diverti-me a ver as cabeças deles com os cabelos todos penteados com brilhantina e tudo, os filhos que em bandos iam para a escola cada um com a sua pasta e seu cantil, as mães que de avental varriam as casas, lavavam a roupa no tanque (gosto do cheirinho a sabão) e ainda arranjaram tempo para fazerem o almoço. Aqui de cima, como já disse o mundo é baixinho mas muito movimentado e divertido. Enquanto assistia ao que faziam os vizinhos pensava que quando a minha secretária voltasse da escola não escapava, até disse em voz alta "-Hoje ela vem escrever tudo, juro mesmo sangue de galinha que vem!" Mas não veio, é verdade mais uma vez fiquei para depois e sem os meus pensamentos escritos porque a minha amiga Nixa chegou a casa, foi almoçar e depois foi brincar às casinhas com o Joãozinho, o vizinho do lado o Manelito e Antónia, vizinhos da frente. A casa da Nixa e do Joãozinho era dentro de um caixote muito grande que está no quintal, a casa dos outros dois era na outra ponta do quintal. A toda a hora eles entravam e saíam para se visitarem e para passearem de braço dado nas avenidas que eles conseguiam ver e eu não via por mais que tentasse. O pior foi quando o Joãozinho resolveu dar um beijo "de marido" na Nixa, ela zangou-se, saiu de "casa" ele tentou agarra-la mas puxou-lhe os folhinhos das cuecas e arrancou-os todos. Eu assistia a tudo de olhos arregalados até os meus cajus tremiam, o Manelito que no princípio da brincadeira queria ser o "marido"da Nixa abandonou a "mulher" dele e queria bater no Joãozinho que se desculpava dizendo que os maridos davam beijos daqueles às mulheres, a Antónia tentava empurrar o "marido" para casa porque o jantar estava pronto e a Nixa num canto com um monte de folhos na mão pensava como ia explicar à mãe o que tinha acontecido com as pobres cuequitas, depois levantou os olhos na minha direcção e disse "- Jueirinho, tu viste que eu não tive culpa, não viste?" eu respondi que sim com o meu ramo mais baixo e deixei cair um caju para ela, nesse momento ela respirou fundo, virou-se para os amigos e disse "- Eu já não brinco mais hoje" depois apanhou o caju e entrou em casa com ar decidido.

IV

Depois do acontecimento mau dos folhos das cuecas rasgados, a brincadeira das casinhas perdeu a graça e os meninos não voltaram a brincar a esse tema. A Nixa, andava mais tempo de patins e também passava mais tempo comigo, o que como devem calcular me deixava muito feliz mas apesar de ter uma vontade enorme de aproveitar o tempo que estávamos juntos, para ditar os meus complicados e profundos pensamentos, não lhe falava no assunto, porque via que ela não tinha vontade de escrever. Um vizinho tinha feito uma espécie de baloiço pendurando num dos meus ramos, duas cordas amarradas a uma tábua e ela vinha sentar-se no baloiço abanando as pernas para cima e para baixo, fazendo-me cócegas no ramo, acreditem que nos divertíamos a valer ela no baloiço a ser beijada pela brisa e eu a fazer companhia. Eu era uma árvore feliz e para tudo ficar perfeito só faltava mesmo ditar as minhas frases maravilhosas que na tentativa de saírem, andavam para cima e para baixo, juntamente com a minha seiva. Acho que a Nixa percebeu isso, porque uma manhã disse "-Jueirinho, está na hora, hoje vamos escrever." "- Vamos?" perguntei, "- Vamos sim, prepara-te" respondeu ela, combinámos então que seria ao fim do dia pela fresca. Eu mal podia esperar, até tinha cãibras nos ramos por causa do nervoso miudinho. Mas infelizmente mais uma vez a Nixa não conseguiu cumprir o prometido. Durante a tarde, andava ela a passear em cima do muro (andar em cima de muros era outra coisa que ela adorava fazer) à volta do quintal, quando a vizinha que andava a regar, começou a brincar com ela, virando a mangueira na sua direcção fazendo com que ela começasse a correr para fugir da água. De repente sem ter tempo para a proteger vi a Nixa escorregar e ficar estendida no chão a chorar. Veio a mãe a correr e o diagnóstico foi " Queixo partido!!!" A mãe correu com ela paro o posto médico na Estrada de Catete e eu fiquei preso ao chão com vontade de me transformar em pássaro para poder ir com elas. Pobre Nixa, mais tarde voltou para casa com o queixo cozido e com um penso enorme. Veio ter comigo antes de entrar, e disse-me "- Jueirinho não volto à rua nos próximos dias porque os rapazes vão perguntar se estou para alugar, vão dizer que tenho um escrito no queixo e vão gozar comigo." Realmente, os meninos não podem ver outro menino com um penso no joelho na testa ou no queixo que maliciosamente perguntam logo "-Tens escritos...estás para alugar?" comparando assim um penso, com aqueles papelinhos que as pessoas colam nas janelas quando as casas estão vagas, mas eu não podia concordar com ela porque não ia aguentar as saudades, por isso disse-lhe que o sol fazia bem aos queixos partidos e que se ela não saísse em casa nunca mais ficava boa.

V

Quando acordei naquela manhã não me passou pelas folhas que o dia ia ser tão complicado e muito menos que iria ser um "dia calendário" uma vez que depois desse dia os miúdos diziam "-Isso foi antes ou depois da cobra?" Estávamos já perto do Natal e o queixo da Nixa estava como novo, quase não se notava a cicatriz por isso as pessoas até brincavam com ela dizendo que não parecia uma costura, parecia um bordado, o que fazia a Nixa sorrir piscando-me o olho satisfeita, prometendo-me com esse sorriso e piscadela de olho uma escrita perfeita dos meus pensamentos, cada vez mais trabalhados. A manhã tinha passado tranquila e eu aguardava o momento especial da folha de papel e do lápis mas o acontecimento que movimentou os meus vizinhos mais próximos durante a hora de almoço fez com que a minha escrita ficasse adiada de novo. Na casa ao lado, a D.São, mãe do Jacinto e da Menita, tinha feito canja para o almoço e como a sopa estava muito quente decidiu pôr os pratos no parapeito da janela para ela arrefecer antes de a levar para a mesa. De repente ouvimos um grito de terror vindo da casa, toda a vizinhança correu para lá e eu fiquei a esticar o meu último ramo para ver se conseguia saber o que se passava mas estavam muitas cabeças juntas e eu não conseguia ver nada. Passados poucos minutos correram todos para a rua e o Sr. Marques, marido da D.São vinha com um pau na mão no pau vinha enrolada uma cobra enorme, quando chegou à rua atirou o pau e a cobra ao chão e passou com o táxi por cima dela enquanto os miúdos assustados se encolhiam todos, eu também me encolhi porque o vizinho estava tão nervoso que quase batia no meu esbelto tronco durante o atropelamento da cobra. Só mais tarde, quando a Nixa me contou, é que fiquei a saber o que tinha acontecido. Segundo a Nixa a D.São foi ao parapeito da janela, buscar o prato da sopa para levar para a mesa e quando pegou nele viu que estava lá uma cobra enroladinha a saborear o calor da sopa, foi nesse momento que assustada gritou atirando com o prato. Nessa noite os kandengues foram para casa mais cedo do que nos outros dias, sem ser necessário as mães chamarem por eles a Nixa, claro está, foi também dizendo "-É melhor ir para casa porque pode andar outra cobra por aí. Jueirinho se uma cobra te fizer mal grita que eu dou-lhe com um patim". Fiquei sozinho mais horas e cheguei à conclusão que vida de cajueiro escritor é fogo mas ter uma amiga é muito bom.

continua...

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