segunda-feira, 3 de março de 2008

Como cheguei à Metrópole


O sonho esta guardado no coração




Um dia, li uma frase que dizia “Como saí de Angola” nesse dia, li vários testemunhos que me fizeram chorar e lembrar. Fui obrigada a lembrar o que tinha tentado esquecer mas que na verdade nunca tinha esquecido e no dia seguinte decidi escrever sobre o assunto, para dizer a verdade não sei até hoje se algum dia conseguirei contar grande coisa sobre a minha partida, de forma a que quem ler o que escrevi consiga sentir a dor que eu senti, a revolta que nascia dentro de mim, a tristeza que me acompanhou logo a seguir à decisão dos meus pais mas vou tentar mostrar o que aconteceu. Foi muito triste, eu não queria vir. Era lá que eu vivia era lá que estavam os meus amigos, o meu lar e o meu gato. Mas a minha mãe e o meu pai mostravam-se irredutíveis, pois nesse dia principio de Janeiro de 1975, no início da minha rua dois homens passaram por mim e pela minha mãe e um disse para o outro "estas duas brancas vão ser minhas" depois de vários episódios assustadores contados por quem tinha visto, ou ouvido contar e até um deles passado no nosso bairro com a Bandeira de Portugal, pisada e rasgada em frente à tropa portuguesa que teve que ficar sem reagir o que para os moradores foi muito triste e revoltante, pois ninguem aguenta ver a sua Bandeira maltratada sem poder fazer nada. Coitados dos militares deve ter sido horrível para eles assistirem a uma coisa daquelas e para nós moradores, era uma coisa inacreditável e é também, até hoje, uma recordação que faz doer muito. Se estes incidentes, apesar de serem cada vez mais frequentes ainda deixavam nos meus pais a esperança que tudo voltasse à normalidade, a frase dita pelos dois homens precipitou a nossa partida porque depois do que ouviu, a minha mãe ficou louca e quando chegamos a casa, começou a dar e a vender tudo, móveis, loiças e até os vasos do quintal. À noite, quando o meu pai voltou para jantar já não tínhamos metade das coisas. Eu não queria acreditar que aquilo era definitivo mas as lágrimas da minha mãe e o ar preocupado do meu pai diziam-me que não havia nada a fazer. Mesmo assim recusei-me a desistir e talvez por isso saí de Luanda com o meu pequeno porta-moedas de palha entrelaçada, com o dinheiro que estava lá dentro com as chaves de casa e com um sonho "voltar",guardo as três coisas e o sonho, até hoje com muito carinho. Saí de Luanda no Paquete Infante D. Henrique no dia 20 de Janeiro, conforme o barco se afastava do cais e Luanda ia ficando cada vez mais pequena o meu coração ia ficando tão pequeno quanto a imagem da minha cidade, olhei para a minha mãe que chorava e tive vontade de ser mágica, conseguir parar o barco, pegar na mão da minha mãe para juntas voltarmos para junto do meu pai que tinha ficado no cais. Naquele dia perdi até o meu gato que não podia viajar num porão de um barco durante oito dias com imensos cães a ladrarem por isso com muito amor despedi-me dele e dei-o antes de partir para não cometer a maldade de o trazer, só por egoísmo. No dia 28 de Janeiro de 1975 cheguei à Metrópole, um outro Portugal, o tal que era Continental. À chegada ao porto de Lisboa tinha vestida uma camisola de gola alta roxa que a minha mãe tinha comprado numa loja do meu bairro antes da viagem, não me lembro dos sapatos, nem se tinha saia ou calças, lembro-me apenas da camisola e de ter tentado calçar umas meias, compradas na mesma loja mas que se desfizeram totalmente, talvez já estivessem a apanhar calor na loja há muitos anos, afinal em Luanda, meias era coisa que não se usava. No cais havia muita gente com cartazes e as pessoas no barco ficaram com algum receio de serem maltratadas mas depois de o barco atracar, apesar dos receios, que afinal não eram totalmente infundados, descemos as escadas em direcção a um novo mundo totalmente desconhecido para mim e que para dizer a verdade eu não estava muito interessada em conhecer. De repente encontrei um homem e uma mulher que diziam serem meus tios, vestidos de uma forma um pouco estranha pareciam agentes secretos de um filme qualquer dos que eu estava habituada a ver nos cinemas S. João, Império, Miramar ou Restauração, ela de casaco comprido e ele de sobretudo. Enquanto falavam para mim, com vozes educadamente falsas que me soavam estranhas eu não conseguia pensar neles como tios porque a forma amavelmente fria com que eles nos olhavam, fazia com que eu não conseguisse sentir por eles o que sempre senti pela minha tia, que também vivia em Luanda e que sempre olhou para mim com amor. Apareceram mais duas tias e um tio e a sensação foi a mesma, aquela gente toda não era importante para mim, tinha saudades do meu gato, queria os meus amigos, faltava-me o meu sol e já não sabia onde era a minha casa. Nesse momento caía uma chuva miudinha como se o céu chorasse de mansinho as minhas lágrimas engolidas desde que partira de Luanda, senti frio no corpo e no coração, Nessa noite deitei-me numa cama fria, perto de uma janela onde durante meses só conseguia ver um céu cinzento e fios dos eléctricos. Nunca esquecerei essa noite nem os dias seguintes porque ainda hoje sinto a dor pela forma como fomos tratados e recebidos aqui, tanto por governantes como até pela própria família, nessa altura não havia terapias nem psicólogos para nos acompanharem, já era uma sorte haver uma casa e dinheiro para comer mas durante muitos anos e apesar de a zona onde moro ser há muito tempo o meu lar, sempre senti a falta do que perdi, até que um dia encontrei um lugar virtual chamado Sanzalangola e foi lá, com pessoas que viveram o mesmo que eu vivi, que aos 46 anos encontrei finalmente a terapia que me faltava e foi nesse lugar virtual que fui buscar as raízes que tinha perdido aos 15 anos numa partida imprevista e numa chegada indesejada.

1 comentário:

Helder Ponte disse...

Nixa,

Que texto tão bonito e pessoal. Foi com ums certa comoção que o li. Também eu saí de Angola em 1975, na esperança de um dia voltar. Contudo, ao fim de trinta anos, ainda não o fiz. Só nós sabemos quanto para nós é tão valioso e tão pessoal o que escreveste.

Se quiseres saberes sobre a minha experiência sobre o mesmo, lê este artigo que eu escrevi sob o título Cidadão do Mundo, para o nosso saudoso Jornal O Estudante, orgão dos Alunos do Liceu Salvador Correia:

http://www.carlossaraiva.com/estudante/200306CidadaoDoMundo.html

Estou certo de que vais gostar. Continua, querida amiga, a brindar-nos com o teu talento genial.

Um abraço,

Helder