quinta-feira, 29 de abril de 2010

O mundo é baixinho III

(continuação)

VI

No dia de Natal, acordei cedo, não queria perder um minuto daquele dia especial, queria estar bem acordado no momento em que o kandengues começassem a sair para a rua por isso, aprumei as minhas folhas dei brilho às minhas castanhas, virei os meus cajus para o sol de forma a ficarem mais amarelinhos do que os ovos das galinhas da mãe da Nixa, alimentadas com milho e esperei pacientemente para ver o que o Menino Jesus tinha dado a cada menino. Cedo começaram a aparecer na rua, os brinquedos novos acompanhados dos seus donos. Eu sabia que a Nixa tinha pedido uma boneca vestida de noiva e esperava que o Menino Jesus não se tivesse esquecido de a comprar . Ela merecia a tal boneca porque uns anos antes a prima dela que é mais velha 12 anos tinha uma boneca em loiça, vestida de noiva que ela sentava todos os dias em cima da sua cama, um dia reparou na paixão com que a Nixa olhava para a boneca sentada na cama, então pegou nela ao colo e perguntou-lhe "-Gostas da boneca?" a Nixa abanou a cabeça em sinal afirmativo, e quando a prima lhe disse "-Eu dou-te a boneca, se tomares conta dela com carinho" ela estendeu os braços num abraço apertado muito feliz com a oferta da prima e prometeu tratar bem da boneca. Infelizmente não conseguiu porque nesse mesmo dia uma menina arrancou-lhe a boneca da mão e atirou-a de um primeiro andar, a minha amiga, a chorar correu para o rés do chão apanhou a boneca um pouco partida e subiu as escadas com a boneca ao colo, quando chegou ao andar de cima a menina tirou-lhe novamente a boneca e repetiu a maldade atirando-a para baixo, dessa vez a boneca ficou feita em cacos e a Nixa desconsolada. No dia em que me contou o que tinha acontecido à linda noiva da prima, como ela lhe chamava, decidiu que nesse Natal ia pedir uma parecida para sentar na cama dela mas não queria que fosse em loiça para não se partir como a outra. No dia 24 à noite veio a correr ao quintal e disse-me "-Jueirinho, amanhã à tarde sento a minha noiva no muro (se o Menino Jesus me der uma) eu sento-me no baloiço e escrevo o que tu ditares" respirei fundo e pensei que finalmente tinha chegado o dia tudo dependia do Menino Jesus. Por isso quando a porta de casa da Nixa se abriu eu espreitei para ver se ela vinha com a boneca na mão, parecendo adivinhar a minha curiosidade ela levantou a boneca para eu ver bem e deu uma gargalhada. Feliz da vida passou por mim e disse "-É linda não é Jueirinho?" eu nunca tinha vista uma boneca tão bonita e para dizer a verdade, noivas a sério só tinha visto uma. As outras meninas vieram a correr para ver a boneca e foram todos para o quintal que ficava em frente enquanto eu ficava a sonhar com uma mangueira carregadinha de mangas, vestida de noiva a olhar para mim apaixonada. Estava tão distraído que nem vi que a Nixa tinha voltado e que passava a mão no meu tronco. Olhei para baixo e vi que estava quase a chorar, aflito perguntei o que tinha acontecido e ela desolada, mostrou-me a boneca que tinha perdido o véu já não abria um olho e tinha ficado sem pestanas."- Nunca mais os deixo mexer nos meus brinquedos, estragam tudo!"disse ela. Desejei ter braços para a abraçar ou ter pernas para a sentar ao meu colo, ela estava mesmo triste a sua boneca nova já parecia velha. Como não conseguia dizer nada inteligente disse-lhe apenas "- Gosto de ti e também gosto da tua linda noiva, mesmo sem pestanas" Ela olhou para mim, olhou para a boneca, abraçou-me e respondeu-me "- Tens razão Jueirinho, mesmo sem pestanas e com um olho fechado ela é a minha linda noiva e eu gosto muito dela, agora tenho que ir contar à minha mãe" Nesse dia não voltou a sair de casa para não lhe estragarem mais nada e por isso os meus pensamentos continuaram dentro de mim a crescer como bolo no forno, à espera do dia seguinte.

VII

O resto do dia de Natal correu bem, na semana seguinte chegou o novo ano, gostei muito de entrar em 1968 com todos os vizinhos em festa e até pedi um desejo, já devem ter adivinhado qual foi mas eu digo na mesma, pedi para conseguir realizar o meu sonho de escrever as minhas memórias. Por isso no dia de ano novo voltei ao ataque enquanto a minha secretária, sentada no muro, comia uma fatia de um bolo com prenda e sem fava, comecei por dizer que sabia que ela estava farta de escrever os trabalhos de casa, continuei mansinho dizendo que sabia que ela estava de férias mas que do meu belo livro ainda só estava escrito o titulo, disse que gostava de escrever umas linhas e ela, satisfeita com a prenda do bolo, nem reclamou disse logo que sim, que no dia seguinte escrevíamos pelo menos dez páginas. Foi um castigo para adormecer nessa noite, estava nervoso e emocionado, dez páginas eram quase um livro. No dia seguinte, a Nixa disse-me bom dia por volta das 10 horas, vinha de patins como sempre e acompanhada do Chau-Chau, travaram em frente ao portão, ela fez-me uma vénia e perguntou "-Jueirinho, tens sede?", respondi "-Não, obrigado.", A minha amiguinha perguntava isso porque achava que eu bebia pouca água por isso às vezes enchia um copo de água e deitava para o chão ao pé de mim. Como nos outros dias em que a Nixa andava de patins, o cão dela, o Chau-Chau, patinava com ela, ele é um bom patinador mas "patina sem patins", é um cão preto e branco e muito peludo, a Nixa diz que ele tem cara de cão chinês eu até esse dia achava que ele tinha cara de parvo principalmente quando vinha fazer chichi no meu tronco e depois olhava para mim com ar satisfeito, por isso eu dizia que o nome dele estava errado não devia chamar-se Chau-Chau, devia chamar-se Chi-Chi mas a dona dele ria-se e dizia para eu não ser resmungão que azedava os cajus. De qualquer maneira fui avisando o príncipe cão que um dia ainda lhe caia um ramo em cima se ele repetisse a gracinha. Apesar de não gostar das façanhas do Chau-Chau em volta do meu tronco achava piada à forma como ele andava ao lado da Nixa quando ela andava de patins, ela deslizava e ele parecia deslizar também e eu ficava cá de cima a ver os movimentos deles lá em baixo no mundo do quintal. Estava a Nixa a fazer uma pirueta complicada quando o Chau-Chau começou a ladrar e correu na direcção de um portão que dava para a zona das mangueiras, mamoeiros, capoeiras e pombal. Em cima do degrau e prestes a entrar no quintal, estava uma ratazana enorme, quando viu o Chau-Chau ficou em pé nas patas traseiras e tentou morder no cão a Nixa muito aflita foi buscar uma vassoura mas a mãe não a deixou aproximar-se, com muita bravura o Chau-Chau, lutou com a ratazana e não a deixou passar do portão. A ratazana morreu e o Chau-Chau ficou ferido, teve que ser tratado e teve direito a mimos todo o dia. Como devem calcular por causa desse episódio as minhas 10 páginas ficaram para outro dia mas não me importei porque o Chau-Chau defendeu a minha amiga e isso é que foi bonito de ver.


(continua)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

O mundo é baixinho II

(continuação)


III

Eu sei que é feio mas tive que esticar os ramos para me espreguiçar, a noitada deu cabo de mim. Acordei com uma D. louva-a Deus embirrante que me perguntou se eu tinha visto passar o namorado dela, claro que eu respondi logo que não sabia dele mas se soubesse também não lhe dizia, coitado do namorado, sei bem a sorte que o espera, já vi alguns casos aqui mesmo no meu elegante tronco. A manhã estava linda, o sol brilhava por cima dos meus ramos por isso, aproveitei para ficar a ver os movimentos da minha rua. Os pais que iam para o trabalho, diverti-me a ver as cabeças deles com os cabelos todos penteados com brilhantina e tudo, os filhos que em bandos iam para a escola cada um com a sua pasta e seu cantil, as mães que de avental varriam as casas, lavavam a roupa no tanque (gosto do cheirinho a sabão) e ainda arranjaram tempo para fazerem o almoço. Aqui de cima, como já disse o mundo é baixinho mas muito movimentado e divertido. Enquanto assistia ao que faziam os vizinhos pensava que quando a minha secretária voltasse da escola não escapava, até disse em voz alta "-Hoje ela vem escrever tudo, juro mesmo sangue de galinha que vem!" Mas não veio, é verdade mais uma vez fiquei para depois e sem os meus pensamentos escritos porque a minha amiga Nixa chegou a casa, foi almoçar e depois foi brincar às casinhas com o Joãozinho, o vizinho do lado o Manelito e Antónia, vizinhos da frente. A casa da Nixa e do Joãozinho era dentro de um caixote muito grande que está no quintal, a casa dos outros dois era na outra ponta do quintal. A toda a hora eles entravam e saíam para se visitarem e para passearem de braço dado nas avenidas que eles conseguiam ver e eu não via por mais que tentasse. O pior foi quando o Joãozinho resolveu dar um beijo "de marido" na Nixa, ela zangou-se, saiu de "casa" ele tentou agarra-la mas puxou-lhe os folhinhos das cuecas e arrancou-os todos. Eu assistia a tudo de olhos arregalados até os meus cajus tremiam, o Manelito que no princípio da brincadeira queria ser o "marido"da Nixa abandonou a "mulher" dele e queria bater no Joãozinho que se desculpava dizendo que os maridos davam beijos daqueles às mulheres, a Antónia tentava empurrar o "marido" para casa porque o jantar estava pronto e a Nixa num canto com um monte de folhos na mão pensava como ia explicar à mãe o que tinha acontecido com as pobres cuequitas, depois levantou os olhos na minha direcção e disse "- Jueirinho, tu viste que eu não tive culpa, não viste?" eu respondi que sim com o meu ramo mais baixo e deixei cair um caju para ela, nesse momento ela respirou fundo, virou-se para os amigos e disse "- Eu já não brinco mais hoje" depois apanhou o caju e entrou em casa com ar decidido.

IV

Depois do acontecimento mau dos folhos das cuecas rasgados, a brincadeira das casinhas perdeu a graça e os meninos não voltaram a brincar a esse tema. A Nixa, andava mais tempo de patins e também passava mais tempo comigo, o que como devem calcular me deixava muito feliz mas apesar de ter uma vontade enorme de aproveitar o tempo que estávamos juntos, para ditar os meus complicados e profundos pensamentos, não lhe falava no assunto, porque via que ela não tinha vontade de escrever. Um vizinho tinha feito uma espécie de baloiço pendurando num dos meus ramos, duas cordas amarradas a uma tábua e ela vinha sentar-se no baloiço abanando as pernas para cima e para baixo, fazendo-me cócegas no ramo, acreditem que nos divertíamos a valer ela no baloiço a ser beijada pela brisa e eu a fazer companhia. Eu era uma árvore feliz e para tudo ficar perfeito só faltava mesmo ditar as minhas frases maravilhosas que na tentativa de saírem, andavam para cima e para baixo, juntamente com a minha seiva. Acho que a Nixa percebeu isso, porque uma manhã disse "-Jueirinho, está na hora, hoje vamos escrever." "- Vamos?" perguntei, "- Vamos sim, prepara-te" respondeu ela, combinámos então que seria ao fim do dia pela fresca. Eu mal podia esperar, até tinha cãibras nos ramos por causa do nervoso miudinho. Mas infelizmente mais uma vez a Nixa não conseguiu cumprir o prometido. Durante a tarde, andava ela a passear em cima do muro (andar em cima de muros era outra coisa que ela adorava fazer) à volta do quintal, quando a vizinha que andava a regar, começou a brincar com ela, virando a mangueira na sua direcção fazendo com que ela começasse a correr para fugir da água. De repente sem ter tempo para a proteger vi a Nixa escorregar e ficar estendida no chão a chorar. Veio a mãe a correr e o diagnóstico foi " Queixo partido!!!" A mãe correu com ela paro o posto médico na Estrada de Catete e eu fiquei preso ao chão com vontade de me transformar em pássaro para poder ir com elas. Pobre Nixa, mais tarde voltou para casa com o queixo cozido e com um penso enorme. Veio ter comigo antes de entrar, e disse-me "- Jueirinho não volto à rua nos próximos dias porque os rapazes vão perguntar se estou para alugar, vão dizer que tenho um escrito no queixo e vão gozar comigo." Realmente, os meninos não podem ver outro menino com um penso no joelho na testa ou no queixo que maliciosamente perguntam logo "-Tens escritos...estás para alugar?" comparando assim um penso, com aqueles papelinhos que as pessoas colam nas janelas quando as casas estão vagas, mas eu não podia concordar com ela porque não ia aguentar as saudades, por isso disse-lhe que o sol fazia bem aos queixos partidos e que se ela não saísse em casa nunca mais ficava boa.

V

Quando acordei naquela manhã não me passou pelas folhas que o dia ia ser tão complicado e muito menos que iria ser um "dia calendário" uma vez que depois desse dia os miúdos diziam "-Isso foi antes ou depois da cobra?" Estávamos já perto do Natal e o queixo da Nixa estava como novo, quase não se notava a cicatriz por isso as pessoas até brincavam com ela dizendo que não parecia uma costura, parecia um bordado, o que fazia a Nixa sorrir piscando-me o olho satisfeita, prometendo-me com esse sorriso e piscadela de olho uma escrita perfeita dos meus pensamentos, cada vez mais trabalhados. A manhã tinha passado tranquila e eu aguardava o momento especial da folha de papel e do lápis mas o acontecimento que movimentou os meus vizinhos mais próximos durante a hora de almoço fez com que a minha escrita ficasse adiada de novo. Na casa ao lado, a D.São, mãe do Jacinto e da Menita, tinha feito canja para o almoço e como a sopa estava muito quente decidiu pôr os pratos no parapeito da janela para ela arrefecer antes de a levar para a mesa. De repente ouvimos um grito de terror vindo da casa, toda a vizinhança correu para lá e eu fiquei a esticar o meu último ramo para ver se conseguia saber o que se passava mas estavam muitas cabeças juntas e eu não conseguia ver nada. Passados poucos minutos correram todos para a rua e o Sr. Marques, marido da D.São vinha com um pau na mão no pau vinha enrolada uma cobra enorme, quando chegou à rua atirou o pau e a cobra ao chão e passou com o táxi por cima dela enquanto os miúdos assustados se encolhiam todos, eu também me encolhi porque o vizinho estava tão nervoso que quase batia no meu esbelto tronco durante o atropelamento da cobra. Só mais tarde, quando a Nixa me contou, é que fiquei a saber o que tinha acontecido. Segundo a Nixa a D.São foi ao parapeito da janela, buscar o prato da sopa para levar para a mesa e quando pegou nele viu que estava lá uma cobra enroladinha a saborear o calor da sopa, foi nesse momento que assustada gritou atirando com o prato. Nessa noite os kandengues foram para casa mais cedo do que nos outros dias, sem ser necessário as mães chamarem por eles a Nixa, claro está, foi também dizendo "-É melhor ir para casa porque pode andar outra cobra por aí. Jueirinho se uma cobra te fizer mal grita que eu dou-lhe com um patim". Fiquei sozinho mais horas e cheguei à conclusão que vida de cajueiro escritor é fogo mas ter uma amiga é muito bom.

continua...

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O mundo é baixinho I

Olá, eu sou o cajueiro que vive em frente à casa da Nixa, para os amigos sou o Jueirinho, é assim que ela me chama, somos amigos e por isso lembrei-me de lhe pedir para escrever algumas coisas sobre mim, eu não o posso fazer porque ainda não sei escrever, sou muito novo, as árvores só vão à escola depois dos 150 anos e eu ainda só tenho 120 .
Contratei a Nixa e durante alguns dias eu e a minha secretária vamos fazer tudo para conseguirem sentir as minhas alegrias, as minhas dificuldades, os meus prazeres enfim, vamos fazer com que vistam a pele de uma árvore.
Combinei com ela que lhe vou pagar com cajus madurinhos como ela gosta, aceitou logo, pudera, a miúda adora cajus.
Eu e a Nixa, conhecemo-nos em 1964. Nesse dia ela apareceu no quintal, olhou em volta, levantou a cabeça na minha direcção e depois de fazer um reconhecimento pelo quintal todo começou a brincar tranquilamente com pequenas coisas que encontrava no chão e que tratava como tesouros, juntando-os num cantinho, folhas bonitas, pequenos paus, pedrinhas redondas e castanhas de caju. Mais tarde, sentou-se perto dos tesouros, pegou nas castanhas de caju e olhou para elas curiosa. Eu com o meu ramo mais comprido esbracejava e chamava "-menina, menina!" mas ela só tinhas olhos para as castanhas de caju, então aconteceu o que eu temia, suavemente pousou todas as castanhas no montinho ficando apenas com uma na mão e diante dos meus olhos esfregou a castanha pelos braços enquanto eu rezava aos berros para a castanha estar seca mas isso não aconteceu e ela ficou com os braços queimados com o ácido da castanha. No dia seguinte ela apareceu de novo no quintal e ficou a olhar para mim, depois aproximou-se e perguntou "-Tu também queimas Jueirinho?" eu olhei pasmado para ela e depois com ar de superioridade respondi "-Claro que não!" ela sorriu e disse "-Então queres ser meu amigo?" e foi assim que ficamos amigos.
I

Daqui do alto o mundo é baixinho, só vejo os lombos dos animais e os cabelos das pessoas a menos que olhem para cima e aí sim, vejo as caras, umas gordas outras magras umas cor de rosa e outras castanhas. Já perguntei à Nixa que anda na 2ª classe e sabe muitas coisas, porque motivo as pessoas são tão diferentes, ela respondeu-me que pensa que são diferentes para serem reconhecidas por Deus mas não tem a certeza. Diz a Nixa que como Ele é bom a desenho vai fazendo caras de várias cores e feitios e vai dando um número a cada uma delas, assim pelo número e pela cara Ele sabe sempre quem é que faz disparates. Eu não sei se é mesmo como ela diz mas que Deus é mesmo bom a desenho, isso é verdade porque eu sou lindo de morrer e foi Ele que me desenhou.

II

Estive aqui, desde manhã cedo à espera da minha secretária mas só às cinco da tarde, é que ela apareceu, toda fresca com duas tranças e disse-me com a maior das latas que esteve todo o dia na praia do km 34 a tomar banho a brincar e a apanhar quitetas, fiquei fulo e respondi-lhe"- Como se não houvesse água em casa para tomares banho ou como se não pudesses brincar aqui, quanto a essas tais quitetas devem ser uma vaidosas que nem fruto dão" ela riu-se foi calçar os patins,( porque a minha amiguinha, quando está em casa ou anda descalça ou anda de patins, a mãe até está sempre a perguntar se ela não tem sapatos.) deu uma volta ao quintal e disse "- as quitetas não dão fruto mas são boas e vão ser o meu jantar, volto depois, gosto muito de ti Jueirinho tonto e ciumento". Fiquei todo inchado porque eu também gosto muito dela, por isso esperei mais um bocado e ela voltou mesmo "- Agora já está tudo bem já posso escrever um pouquinho da minha história" pensei eu mas enganei-me porque nesse momento veio uma cambada de "turras" amigos dela e decidiram todos que bom era mesmo irem jogar ao prego, o que eu acho um perigo e dos grandes para mim, sim porque aquelas coisas afiadas tão pertinho dos meus pobres pés raízes até me arrepiam as folhas e me encolhem as castanhas. Eu bem dou aos ramos e gemo mas como não posso sair daqui lá me vou distraindo com as gargalhadas felizes deles e com as carícias que fazem no meu tronco enquanto esperam a sua vez de jogar. Quando finalmente acabou a brincadeira e a Nixa veio para perto de mim de lápis e papel na mão, fiquei tão feliz que ate me nasceu uma folha, tinha tantas coisas para lhe ditar mas infelizmente nem tive tempo de ditar a primeira palavra, porque a mãe dela apareceu para estragar o negócio, dizendo que já estava na hora de ir para a cama. Antes de se ir embora ainda me gritou da entrada "-Dorme bem Jueirinho, não fiques triste, paciência, fica para amanhã". "-Que remédio" rosnei eu, mas passou-me depressa a birra porque um morcego veio comer uma goiaba para cima do meu ramo mais alto, o camaleão que vive no quintal sentou-se no muro e ficámos os três a conversar até de madrugada, sentido o cheiro quente e húmido da terra misturado com o cheiro doce e fresco das goiabas maduras das vizinhas goiabeiras, lá no alto a lua enorme e redonda parecia aprovar a nossa conversa sorrindo luminosa para nós.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um dia destes vou começar a escrever as histórias do meu cajueiro "Jueirinho"

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Tristezas transformadas

Enfeitiça-te na tua verdade
e ela enlaça-te de olhos acesos,
na paixão da noite.
Entrega-te a uma palavra amiga
e ela empolga-te de emoção,
fazendo arder o dia.
Enrola-te nas farpas que magoam
e elas protegem-te encantadas,
devolvendo-te a calma da tarde.
Embrulha-te na amizade verdadeira
e ela afaga-te com doçura,
oferecendo-te os desejos do mundo.
Enrosca-te nos amores que conheces
e eles enlaçam-te deliciados
fazendo-te beber risos.
Encosta-te aos cardos que picam
e eles afastam-te os medos,
entregando-te cores do pôr do sol.
Esconde-te nos sonhos que partem
e eles namoram-te lânguidos,
levando-te tentações nos braços.
Enfia-te nos dardos que rasgam
e eles confortam-te sinceros,
libertando-te, com ternos cuidados.
Embala-te nos doces lados da vida
e eles abraçam-te confiantes,
enviando-te enfeites de estrelas.



Dedicado a quem parte...pensando em quem fica... com um beijo carinhoso para o meu padrinho Helder

segunda-feira, 12 de abril de 2010

cowboys e gringos

Como era divertido ir ao cinema ao domingo à tarde, comer batatas fritas, rir e beber coca cola mas como não há bela sem" se não" também aqui havia um sério "se não".Eu tinha medo, medo e mais medo quando a noite chegava, é que para mim, ver morrer indios e cowboys no filme, dava direito a uma noite sem dormir. Irritada a minha mãe proferia ameaças terríveis para o domingo seguinte, acabando invariavelmente a perguntar porque motivo não ia eu ao baile do clube do bairro em vez de ir gastar dinheiro no cinema e depois não dormir sossegada. Um domingo para grande alegria da minha mãe resolvi ir ao clube. Estava eu sentadinha na cadeira quando vejo à minha frente um rapaz a fazer sinal para dançar, olhei para os lados e pasmada, confirmei que os sinais eram para mim. Meia atordoada, levantei-me para entrar no mundo que até àquele momento pertencia apenas às raparigas mais velhas. Dancei toda a tarde e diverti-me imenso. Entusiasmada, cheguei a casa e contei tudo à minha mãe, acabei a reportagem da tarde dizendo que voltaria ao clube no domingo seguinte. Para mal dos meus pecados a "D.Neta"não achou graça ao facto de ter uma filha a dançar no baile com um "gringo" qualquer e nessa noite quem dormiu mal foi ela e não eu. No domingo seguinte quando eu me preparava para ir dar ao pé, a minha mãe veio com dinheiro na mão e disse para eu ir ao cinema, quando eu barafustei e disse que não queria ir ela respondeu apenas "Mas quero eu!"

02/04/2010

sábado, 10 de abril de 2010

Uma janela entre a paisagem rural e a paisagem urbana...entre o medo e a fé

Há uns minutos, ouvi a minha vizinha de quarto chorar. Ela é de Moscovo e não sabe falar português, eu não sei falar russo mas mesmo assim, aproximei-me da cama dela, sentei-me na beirinha, peguei-lhe na mão e fiz uma oração por ela e por mim, talvez por estarmos unidas na dor e na fé, chorámos juntas. A pouco e pouco ela acalmou-se, quando acabei a oração agradeceu-me e eu senti-me bem mais calma. Voltei à minha cama peguei no bloco, na caneta e vim para a janela, encostei-me ao vidro e chorei as últimas lágrimas desta série. Digo desta série porque talvez venha a ter outras séries e talvez chore outras lágrimas de medo mas desta vez ganhei à tristeza que habitou em mim alguns dias. Desta janela do hospital, vejo que tenho pela frente mais obstáculos do que eu imaginava ter há três dias atrás mas vejo também raios de sol que batem em pequenas casas, de diferentes amarelos transformando-as em pontos luminosos na paisagem. Desta janela, descubro como é difícil lutar contra o que não se vê, ao mesmo tempo vejo os pinheiros aqui perto, um velho moinho logo ao lado e ao longe vejo o meu mar abraçado ao céu. Agora sim, as dúvidas vão embora fica apenas a fé que o coração sente e a beleza que os olhos agradecem.

31/03/2010