segunda-feira, 17 de março de 2008

Os primeiros dias na Metrópole...aventuras e desventuras



Amarelo...uma das cores que usei só para dar alegria ao céu :)



Três retornadas invisíveis no Parque Eduardo VII

Em 1975, no final de Janeiro, na cidade de Lisboa, comecei a dormir e a acordar todos os dias na Rua de S. Bento, numa casa sombria onde os retornados eram peças a mais na sociedade portuguesa e onde faziam questão de nos lembrar disso constantemente, por gestos, ou palavras ditas de uma forma subtilmente maldosa. Nessa casa, dias depois da nossa chegada foi acolhido um negro que andava a dormir há semanas na rua, não por ele ter fome, sede ou frio mas apenas com o simpático intuito de nos provocarem e de nos fazerem sentir mal. Certo dia estava a minha mãe na cozinha e dizia a dona da casa para o tal rapaz “Pois é Domingos, os brancos andaram lá a explorar-vos e ganharam muito dinheiro à vossa custa”, tive vontade de falar mas devido ao olhar magoado da minha mãe contive-me. Afinal, nós estávamos a morar as duas num quarto alugado por bastante dinheiro, para a época, tínhamos direito apenas a um banho por semana e todos os outros banhos eram pagos à parte, depois dos banhos tínhamos que tirar a água da banheira para dentro de baldes para não se gastar água na sanita, uma questão de poupança que obrigava os hóspedes a trabalharem para o hospedeiro. O tempo que demorávamos no quarto de banho era controlado para saberem se estávamos a tomar um banho sem pagar e a minha mãe já estava informada que quando o meu pai chegasse o preço do quarto aumentava para mais 50% apesar de ficarmos os três no mesmo quarto e de a roupa utilizada nas camas e nos banhos ser nossa. “Então o que era aquilo? Exploração ou outra coisa? Talvez maldade e exploração juntas!” pensava eu revoltada e com vontade de gritar, acabei por deixar o grito na garganta até hoje e fui para o quarto chorar. Mas a vida lá foi correndo por isso matriculei-me no Liceu Maria Amália onde entrei no segundo período escolar e sai no final do ano lectivo sem que as professoras, tivessem conhecimento aparente da minha existência, exceptuando a professora de Francês que um dia perguntou uma coisa na turma, carteira a carteira e como eu fui a única a responder ( na última carteira da sala), passou a olhar para mim com alguma simpatia. As colegas também desconheciam a minha existência por isso só fiz amizade com duas que também eram retornadas como eu, uma tinha vindo de Angola e a outra de Moçambique. Na aula de Ginástica a professora nem chamava pelos nossos nomes para marcar as presenças, motivo pelo qual nunca mexemos um dedo nessa aula, para dizer a verdade essa aula era para nós a aula dos sonhos pois era passada a relembrar os lugares onde tinham ficado os nossos corações. Claro que reprovámos as três com distinção e nem podia ser de outra maneira, quando nos sentíamos invisíveis numa escola, onde os alunos eram mal-educados e os professores pareciam gostar, acho que nós éramos educadas demais e não fazíamos parte daquele grupo escolar. Desde que tinha chegado a Lisboa tudo na minha vida era diferente, sentia-me um pinguim no Brasil mas ao contrário, a minha roupa era fria demais e nem sequer estava na moda, pela forma como todos olhavam para mim com um ar entre agoniado e incrédulo. A grande aventura dos primeiros dias foi ir às compras, nunca pude imaginar que ir às compras pudesse ser uma tortura mas foi. A minha mãe comprou-me um casaco comprido de fazenda e umas botas, dizia ela que isso me fazia falta para ir para a escola. Eu nunca tive “canivetes” sempre tive “pernas”, felizmente e por esse motivo as botas transformaram-se numa tortura, sentia-me presa e parecia que não sabia andar. O casaco era outro problema, tinha dificuldade em levantar os braços e para me segurar nos transportes públicos tinha mesmo que levantar o braço. Com as botas e o casaco mais as camisolas, sentia-me deficiente dos braços e das pernas e  talvez por isso , até hoje não me dou bem com muita roupa nem com botas justas. Havia ainda um drama maior, as cores das roupas, toda a gente andava vestida de preto, cinzento ou castanho e eu só queria, laranja, amarelo, verde ou cor-de-rosa, tudo cores que as lojas não vendiam e pela cara dos vendedores não iriam vender nunca. Comecei a achar que na Metrópole não conheciam bem as cores e que eram as pessoas que faziam o céu ficar tão triste e escuro uma vez que não o alegravam com as cores felizes. Mas um dia mudei para Cascais, o verão chegou, o sol brilhou e brilhou tanto que aqueceu este país, de tal maneira o aqueceu que foi dito por aí, que a culpa de estar tanto calor era dos retornados que tinham trazido o calor com eles.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Como cheguei à Metrópole


O sonho esta guardado no coração




Um dia, li uma frase que dizia “Como saí de Angola” nesse dia, li vários testemunhos que me fizeram chorar e lembrar. Fui obrigada a lembrar o que tinha tentado esquecer mas que na verdade nunca tinha esquecido e no dia seguinte decidi escrever sobre o assunto, para dizer a verdade não sei até hoje se algum dia conseguirei contar grande coisa sobre a minha partida, de forma a que quem ler o que escrevi consiga sentir a dor que eu senti, a revolta que nascia dentro de mim, a tristeza que me acompanhou logo a seguir à decisão dos meus pais mas vou tentar mostrar o que aconteceu. Foi muito triste, eu não queria vir. Era lá que eu vivia era lá que estavam os meus amigos, o meu lar e o meu gato. Mas a minha mãe e o meu pai mostravam-se irredutíveis, pois nesse dia principio de Janeiro de 1975, no início da minha rua dois homens passaram por mim e pela minha mãe e um disse para o outro "estas duas brancas vão ser minhas" depois de vários episódios assustadores contados por quem tinha visto, ou ouvido contar e até um deles passado no nosso bairro com a Bandeira de Portugal, pisada e rasgada em frente à tropa portuguesa que teve que ficar sem reagir o que para os moradores foi muito triste e revoltante, pois ninguem aguenta ver a sua Bandeira maltratada sem poder fazer nada. Coitados dos militares deve ter sido horrível para eles assistirem a uma coisa daquelas e para nós moradores, era uma coisa inacreditável e é também, até hoje, uma recordação que faz doer muito. Se estes incidentes, apesar de serem cada vez mais frequentes ainda deixavam nos meus pais a esperança que tudo voltasse à normalidade, a frase dita pelos dois homens precipitou a nossa partida porque depois do que ouviu, a minha mãe ficou louca e quando chegamos a casa, começou a dar e a vender tudo, móveis, loiças e até os vasos do quintal. À noite, quando o meu pai voltou para jantar já não tínhamos metade das coisas. Eu não queria acreditar que aquilo era definitivo mas as lágrimas da minha mãe e o ar preocupado do meu pai diziam-me que não havia nada a fazer. Mesmo assim recusei-me a desistir e talvez por isso saí de Luanda com o meu pequeno porta-moedas de palha entrelaçada, com o dinheiro que estava lá dentro com as chaves de casa e com um sonho "voltar",guardo as três coisas e o sonho, até hoje com muito carinho. Saí de Luanda no Paquete Infante D. Henrique no dia 20 de Janeiro, conforme o barco se afastava do cais e Luanda ia ficando cada vez mais pequena o meu coração ia ficando tão pequeno quanto a imagem da minha cidade, olhei para a minha mãe que chorava e tive vontade de ser mágica, conseguir parar o barco, pegar na mão da minha mãe para juntas voltarmos para junto do meu pai que tinha ficado no cais. Naquele dia perdi até o meu gato que não podia viajar num porão de um barco durante oito dias com imensos cães a ladrarem por isso com muito amor despedi-me dele e dei-o antes de partir para não cometer a maldade de o trazer, só por egoísmo. No dia 28 de Janeiro de 1975 cheguei à Metrópole, um outro Portugal, o tal que era Continental. À chegada ao porto de Lisboa tinha vestida uma camisola de gola alta roxa que a minha mãe tinha comprado numa loja do meu bairro antes da viagem, não me lembro dos sapatos, nem se tinha saia ou calças, lembro-me apenas da camisola e de ter tentado calçar umas meias, compradas na mesma loja mas que se desfizeram totalmente, talvez já estivessem a apanhar calor na loja há muitos anos, afinal em Luanda, meias era coisa que não se usava. No cais havia muita gente com cartazes e as pessoas no barco ficaram com algum receio de serem maltratadas mas depois de o barco atracar, apesar dos receios, que afinal não eram totalmente infundados, descemos as escadas em direcção a um novo mundo totalmente desconhecido para mim e que para dizer a verdade eu não estava muito interessada em conhecer. De repente encontrei um homem e uma mulher que diziam serem meus tios, vestidos de uma forma um pouco estranha pareciam agentes secretos de um filme qualquer dos que eu estava habituada a ver nos cinemas S. João, Império, Miramar ou Restauração, ela de casaco comprido e ele de sobretudo. Enquanto falavam para mim, com vozes educadamente falsas que me soavam estranhas eu não conseguia pensar neles como tios porque a forma amavelmente fria com que eles nos olhavam, fazia com que eu não conseguisse sentir por eles o que sempre senti pela minha tia, que também vivia em Luanda e que sempre olhou para mim com amor. Apareceram mais duas tias e um tio e a sensação foi a mesma, aquela gente toda não era importante para mim, tinha saudades do meu gato, queria os meus amigos, faltava-me o meu sol e já não sabia onde era a minha casa. Nesse momento caía uma chuva miudinha como se o céu chorasse de mansinho as minhas lágrimas engolidas desde que partira de Luanda, senti frio no corpo e no coração, Nessa noite deitei-me numa cama fria, perto de uma janela onde durante meses só conseguia ver um céu cinzento e fios dos eléctricos. Nunca esquecerei essa noite nem os dias seguintes porque ainda hoje sinto a dor pela forma como fomos tratados e recebidos aqui, tanto por governantes como até pela própria família, nessa altura não havia terapias nem psicólogos para nos acompanharem, já era uma sorte haver uma casa e dinheiro para comer mas durante muitos anos e apesar de a zona onde moro ser há muito tempo o meu lar, sempre senti a falta do que perdi, até que um dia encontrei um lugar virtual chamado Sanzalangola e foi lá, com pessoas que viveram o mesmo que eu vivi, que aos 46 anos encontrei finalmente a terapia que me faltava e foi nesse lugar virtual que fui buscar as raízes que tinha perdido aos 15 anos numa partida imprevista e numa chegada indesejada.

sábado, 1 de março de 2008

Baía Azul

1960
1962 com a minha mãe

2006 com a minha princesa
1989
 1973
1997
1984
1993


1960
As minhas praias...os meus mares em várias épocas da minha vida


Se Iemanjá existe, conhece de certeza a Baía Azul, deve até ter uma casa de férias por lá.
E se existe o paraíso deve ser muito parecido com aquele lugar. A força da mente tem poder mas a força das recordações consegue fazer milagres porque se fechar, os olhos consigo chegar lá rapidamente e logo vejo caranguejos a correr na praia, sinto quitetas debaixo dos pés, vejo peixes dentro de água, sinto o sol na pele. o solzito bom e o murmúrio da praia fazem-me esquecer a civilização, a luta diária, a maldade. Aqui no paraíso consigo tocar no amor. Azul é a cor do céu, azul é a cor da Baía. Olhei para o poderoso azul e sentei-me na areia, de pernas cruzadas, olhei encantada para a água que me fazia carícias nos pés e que em seguida, brincalhona, se afastava, pequenas conchas entravam na brincadeira e rolavam felizes num vai e vem constante. O sol espreitou e não resistiu, mandou alguns raios para dentro de água e sorria feliz enquanto mostrava o seu brilho, saltitando e beijando tudo e todos. Ouvi passos, voltei-me e vi olhos que sorriam, levantei-me feliz porque tinham chegado ao paraíso algumas celebridades da praia, as conchas, a alforreca, a estrela do mar e o caranguejo. Meti conversa com os recém-chegados “Conchinhas estão boas?”“ Sr. Caranguejo, como vai a família?”“D. Alforreca está um bocadinho gorda, tem que fazer dieta!”“Menina Estrela-do-mar, que bem lhe fica esse biquíni.”
Eles não responderam mas eu sei que ouviram e assim ficámos em harmonia e paz em cima da areia macia e quente beijada pela água transparente enfeitada com bolhinhas coloridas. A hora de partir chegou e com ela, o fim da conversa com a onda, o fim do beijo do sol, o fim do toque macio da areia morna o fim deste mar e de outros que vivem em mim mas como o mar não tem fim, neste momento o meu mar é o de Cascais que representa todas as praias que me deixaram saudades desde a Ilha ao Mussulo, desde a Corimba à Baía Azul, desde o Morro dos Veados ao km 34.